22 de fevereiro de 2024

Silêncio

Como confiar no silêncio?
Confio no meu escuro
Fruto maduro e escuso
Furo intruso e intenso
Fluxo imenso e difuso
Que vasculha, instaura
Âmago que permeia, restaura
Decanta e incendeia aura
Que fundifica a luz
Que o afeto traduz
Em ensimesmada cruz
Que hora marca, hora jorra
Nunca fraca, nunca joga
Pois tudo sabe
Ainda que tão pouco
Ainda que tão fundo
Mesmo que desabe
Mesmo que louco
Não é todo mundo
E faz sua anábase
Refaz seu moinho
Reformula a frase
Dirige seu próprio sonho
Ainda que devagarinho
Se olha risonho
Faz muitos caminhos
Ainda que sozinho
Se imagina bonito
Faz do samba infinito
Com mais de mil compassos
Pois não aceita mais escassos
Não acata mais incêndios
Não confia nos silêncios

17 de fevereiro de 2024

Vela

O que acontece quando a vela escorre?  

Quando a ampulheta esvazia?  

Quando o sonho se realiza?  

Ou se esconde atrás da nuvem?  

Quando a chuva cessa  

Se essa gota seca  

Quando o raio sobe  

E minha vontade é estática  

Quando a luz acaba no Alasca  

Quando a dose te deixa apática  

Ou quando a influência passa  

O avião desce  

O sono acaba  

A corda cede  

A neve desaba  


Do outro lado da linha uma lágrima  

No silêncio da fibra ótica a lástima  

Que cerra pra escorrer a água  

E se encerra no calor que abafa  

E se pudesse desfazer o abalo  

E se pudesse ensurdecer o badalo  

E entardecer o intervalo  

Para que existisse apenas a falta  

E a falta fosse em si uma fala  

E o amanhã fosse mais uma vala  

E a vontade fosse só essa vela

30 de setembro de 2023

Arco Íris

Sinto falta de coisas que não eram reais
A promessa de choro
O Sol lambendo com fogo
A proteção dos meus ancestrais
Meu banho agora sem louro
O silêncio dos olhos em coro
No fundo da cidade, vitrais

O encaracolar do cabelo do céu
Preso da luz sob o véu
As leituras de búzios e cartas
De um destino que não se farta
Na descida que engole dor e faca
Não há cor que se faça
Na sombra que se projeta e disfarça

Com pincel um rabisco tímido e fiel
Separa linhas que nunca se cruzam
Se a cobra se encobre em si
Não deixando vidas ao léu
Os escorpiões sempre se usam
Não sabem o que vai aqui
Pois não sabem o que é seu

Do degrau mais gelado
Piso descalço e brando
No arpejo a mim fadado
Ser a sina do arco íris branco
Nas asas da fênix albina
Que decanta e desatina
Sofre e se aproxima
Da continuidade do seu fim
Dor e amor que são um em mim

Fonte de água fria e espessa
Faz com que ninguém esqueça
Não há nada que te proteja
Não há falta que se complete
Proximidade que não se repele
Ou vida que se protele
A história sempre se repete

Quero ir, não sou daqui
Pra ver o mar e rir
Pra deixar a falta se expandir
Olhar o espelho abrir
Me abraçar, me cobrir
Me nascer, colorir

16 de junho de 2023

Marrom

Tal o Sol calmo

Que muda o ângulo da sala

A cada dia, um palmo

A cada batida, uma mala

Cheia de lampejos

Um broto que não vejo

Um desejo de beijo

Da água, ensejo

Em consciência são 

Uma pena no coração

Um caminho que passo

Um muro que desfaço

Do antebraço laço

Que risca o céu escasso

Com risos e cachos

Saltos e planos

A paz que atino

Pois voar é humano

Mas aterrissar é divino

Tez que ilumino

De bondade e saudade

De brio e cidade

Que habita o tentar

Num banho soltar

E sonhar

Que o fogo gelou

Que a neve ardia

E agora acordado

Sei que me queria

No encaixe marrom

Aceitar o que é bom

Deitado no som

Da pele que atrito

Do fim que grito

E do começo quisto

Que me rabisco

E fico

2 de maio de 2023

Oblíquo

Contra luz

Contra indicado

Corpos nus

Assombreados

Púbis e pélvis

E o que paira no ar

São elos leves

Que veem fraquejar 

Tremo, relembro

Espremo, membro

Membrana a gotejar

Desejo a solapar

Sol a sobrepor

A sombra a desejar

O segredo a penetrar

E a água a descobrir 

Na nuance da nádega 

Num beijo e mais nada

E nada na água

E na água afaga

E afogo na água 

E na água nada

Tudo

Fundo

No umbigo

Oblíquo 

Escondido 

E declarado

Lânguido

E apertado

Mordiscado 

E molhado

Tenso e aliviado

Na tez ou no redário

A três no armário 

Eu e meu imaginário 


23 de janeiro de 2023

Centro

O centro sempre foi cinza

Mas agora esfriou dois tons

Não tem samba, nem ginga

Se tem, não identifico os sons


Praças cheias de vazio

E de pessoas sem feição 

O vento insiste num assobio

Quando dobro a São João 


A cidade se acaba em chuva

A apatia emudece meu canto

A nuvem me dá uma surra

Estatelado engulo o pranto


Desfaleço numa Sé sem fé 

O ruído do tempo me faz mal

Rumo só e atemporal a pé 

Descanso só se tem temporal


Ruas entalhadas sem emoção 

Serenam um amor sem verdade

A porta cerrou sem comoção 

Uma lágrima inundou a cidade


Copas se iludem em Morse

Sombras se fundem à intensidade

Por mais que a memória force

Não havia sinais de piedade


E a cada consumir da ira

Recordo de sua inclemência

Certo que meu valor não é pira

Deixo pra trás a sua demência 









16 de janeiro de 2023

Cena

O estômago me afronta

A noite adentra

Ou talvez o dia

Entranha sedenta

Que desassossega

E disassocia

Sangue e lágrima

Que verte e silencia 


O palato se encolhe 

Antebraço queima

Meu peito em ruínas

Que a mente escolhe

E o pulso desafina

O olho teima

A bacia treme

O olho titubeia

Quadrado ou frame

A cena é a mesma

Hades anseia

A figura arqueia

No peso do mar

Se morre a sereia


O chão que falta

O ar não passeia 

Doses de pulsão

Que a raiva despenteia

No centro do universo

A dor em reconvexo

Buraco de bala no plexo

Destrói cada verso

Cada carta, pauta

Sobra a falta

Sobra a raiva

A dor na cervical 

O cordão umbilical 

O nojo intestinal 

A mudez verbal 


A língua dormente

E o dedo que formiga 

Se unem no vacilo

Para um último estribilho 

A força é de quem sente

A realidade é amiga

Abra os olhos e siga